Não sei se alguém já observou que uma das principais características da vida é o fato de que ela exige um invólucro. A menos que uma película de carne nos envolva, morremos. O homem só existe na medida em que está separado daquilo que o circunda. O crânio é o capacete de um astronauta: mantém-te dentro dele ou morrerás. Morrer é despojar-se, a morte é comunhão. Pode ser maravilhoso mesclar-se à paisagem, mas fazê-lo significa o fim do tenro ego.
Nunca tentava dormir sobre o lado esquerdo, até mesmo naquelas horas lúgubres da noite em que o insone aspira por um terceiro lado após haver explorado os dois que possui.
Um quente fluxo de dor pouco a pouco substituía a sensação de frio e madeira da anestesia em sua boca abominavelmente martirizada, ainda semimorta naquele início de degelo. Depois disso, durante alguns dias ficou de luto cerrado por uma parte íntima de si próprio. Surpreendeu-o verificar o quanto era afeiçoado a seus dentes. A língua, aquela foca gorda e lustrosa, costumava deixar-se cair com um baque e deslizar alegre entre os rochedos familiares, conferindo os contornos de um reino ameaçado mas ainda seguro, mergulhando da grota na angra, subindo aqui uma pedra pontiaguda, testando ali uma reentrância, encontrando um pedaço de alga doce na mesma fenda de sempre; mas agora não restava nenhuma das antigas marcas do terreno, tudo o que existia era apenas uma grande ferida sombria, uma terra incognita de gengivas, que, por medo e repugnância, ele se eximia de investigar. E, quando punha as dentaduras, era como se o pobre crânio de um fóssil estivesse sendo equipado com a queixada sorridente de um total estranho. (...) À noite, depositava seu tesouro num copo especial cheio de um líquido também especial, em que ele ria para si mesmo, rosa e pérola, tão perfeito quanto um belo exemplar da flora submarina. (...) e com aquele novo anfiteatro de plástico translúcido sugerindo, por assim dizer, um palco e um espetáculo.
Tinha cabelos avermelhados cortados rente, cílios longos e pálidos que lembravam traças.
... toda noite duas estátuas monstruosas com pernas primitivas de pedra caminhavam pesadas de um lado para o outro – formas difíceis de reconciliar com a compleição na realidade franzina de seus vizinhos do andar de cima...
... encontrava-se ainda no estágio bem-aventurado da coleta de material...
O Rei, seu pai, vestindo uma camisa esporte muito branca aberta no pescoço e um paletó esporte muito preto, estava sentado diante de uma ampla escrivaninha cujo topo finamente envernizado duplicava seu busto às avessas, transformando-o numa carta de baralho.
... duas gordas e idosas senhoras envoltas nas capas de chuva transparentes, parecendo batatas embrulhadas em papel celofane.
... estava esperando a bagagem sair do ventre do ônibus.
"Pnin", de Vladimir Nabokov, SP, Companhia das Letras, 1997.
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
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Um comentário:
É o livro que estou lendo atualmente e a maneira sofisticada, com riqueza de detalhes do Nabokov torna a leitura ainda mais prazerosa. Recentemente, O Millor Fernandes fez uma citação sobre esta obra em sua página na Revista Veja.
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